“É interessante observar que a cooperação brasileira entra e cruza tudo. Financiamentos, todos os investimentos. Aí você vê a força da influência brasileira na formação das instituições que pensam os projetos dentro dos países.”

 

Em meados de julho de 2012, Karina Kato, doutora em Ciências Sociais pela UFRRJ e Ana Garcia, professora de Economia Política do Instituto de Relações Internacionais da PUC- Rio, ambas técnicas e pesquisadoras do PACS (Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul), viajaram por duas semanas por Angola e Moçambique, dois países africanos de língua portuguesa. O objetivo da viagem era fazer o mapeamento de como ocorrem às relações de financiamento, investimento e cooperação do Governo do Brasil nos países citados, e analisar o que está por trás do discurso de “transferência e troca de conhecimento” existente na expansão do modelo de desenvolvimento do Brasil para os demais países da Região Sul.

O projeto, financiado pela agência alemã Miseror, resultou em um vasto estudo lançado no último dia 06 de dezembro, no auditório do Conselho Regional de Economia (Corecon), no Centro do Rio de Janeiro. “A história contada pela caça ou pelo caçador? Perspectivas sobre o Brasil em Angola e Moçambique”, traz uma análise exploratória dos empréstimos brasileiros e a forte presença das multinacionais e transnacionais brasileiras no cotidiano de moçambicanos e angolanos, que tem a Odebrecht, a Vale, a Rede Globo e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como propagadores do atual “milagre brasileiro”.

Qual foi o fator que motivou a realização da pesquisa, como o projeto se formatou?
Karina Kato – A gente já acompanha pelo PACS o modelo do BNDES de desenvolvimento para o Brasil, que se pauta na exploração de recursos minerais, na produção de commodities avícolas para exportação, e todas as consequências sociais e econômicas atreladas ao aprofundamento da implantação desse modelo. A partir dos trabalhos da Plataforma BNDES, nos chamou a atenção para a expansão por parte do banco em transações para fora do Brasil, apoiando a internacionalização de empresas brasileiras, estatais ou não, com apoio a projetos, linhas de crédito e financiamento. Aí começamos a nos questionar se haveria nesse processo uma transferência de um modelo. A gente estaria exportando um modelo de desenvolvimento para esses países, ou não? O que estava por trás disso? Fizemos a proposta e apresentamos para Miseror, que é uma agência de cooperação alemã e que estava interessada em financiar um projeto desse tipo. Escolhemos então dois países da África lusófona, Angola e Moçambique, já que a língua seria um fator facilitador na execução do projeto, que ficou sendo gestado por um ano.

Ana Garcia – Depois de um primeiro momento e analisando a conjuntura dos investimentos do Brasil em países da região da América do Sul, a partir da política de expansão de multinacionais brasileiras que começou no primeiro mandato do governo Lula, e na virada para a África logo em seguida, vimos que era difícil focar só no BNDES por um motivo muito simples: a falta de acesso aos dados. A gente tem ainda uma visão muito por cima de quais são os investimentos do BNDES em projetos,  porque o banco não disponibiliza as informações. Decidimos então ampliar o mapeamento de quais empresas brasileiras estão atuando nos países pesquisados com investimento público, mas também, quais empresas não estão envolvendo investimento público. Dessa forma, expandimos a pesquisa para um tripé que envolve os eixos financiamento, investimento, e o eixo da cooperação, visto que o Brasil passou a ser um doador internacional de ajuda ao desenvolvimento. A África acumula cerca de 50%, metade dos projetos de cooperação brasileiros, e que tem Moçambique como o principal país recebedor dessa ajuda. O financiamento público brasileiro só vai para atores/empresas ou firmas brasileiras, ele não financia o governo de um outro país. Em alguns casos não há como desvincular a cooperação brasileira ao interesse empresarial e isso a gente vê com mais clareza na área da agricultura, onde a Embrapa entra com toda a força, promovendo exatamente aqueles setores que no Brasil são mais fortes.

Com Angola e Moçambique tendo uma agricultura baseada na subsistência, como se dá a relação do investimento brasileiro nesse setor?

O que para nós foi uma questão importante é a expansão da agricultura e do agronegócio brasileiro para lá. Porque são dois países que importam tudo que comem, a produção deles é de subsistência mesmo. Não uma cultura de escala para alimentar a população urbana. Então há uma necessidade deles concreta na produção. No supermercado o tomate é da África do Sul, o leite da Holanda. As empresas entram no país dizendo que vão produzir alimento. Mas entram com soja, com cana-de açúcar, onde o Brasil tem o que eles chamam do “know how”. O Brasil tem o “know how” em mineração, no agronegócio, na  produção de soja e de etanol. Você quer agricultura que produza em escala, mas você precisa então comprar o pacote brasileiro. O que a gente percebeu durante a pesquisa é que tanto em Angola quanto em Moçambique, eles entendem que há espaço para a produção dessa agricultura em larga escala e para a produção da agricultura familiar. Só que a gente conhece a história do Brasil, que pode haver espaço num curto prazo. Mas no médio e longo prazo, a tendência é expulsar o agricultor-camponês familiar para fora ou agregá-lo nas indústrias do monocultivo, quando ele não migra para trabalhar na indústria na  cidade.

Além do mapeamento, a pesquisa ouviu os atores envolvidos. Quem foram os entrevistados?

Ana Garcia – Além de fazer o levantamento de como se dá esse modelo, nós procuramos ouvir dos atores sociais que estão lá o que eles acham desse processo de desenvolvimento. A gente foi, além de querer fazer esse mapeamento mais amplo,  investimento, financiamento e cooperação, escutar dos atores locais a percepção deles sobre essa entrada do Brasil em seu país.

Karina Kato – Esse foi o grande ponto diferencial da pesquisa. Nós lemos muita coisa para preparar o relatório, para preparar o campo de pesquisa principalmente, e dificilmente você tem a visão de atores africanos. Então a gente não limitou quem seriam  os entrevistados. Entrevistamos uma gama de pessoas, envolvendo movimentos sociais, atores governamentais, de agências de fomento, representantes de Ministérios, Secretarias, Embaixadas; atores privados a gente tentou o contato com vários, mas só conseguimos efetivamente um. Entrevistamos também acadêmicos de várias linhas e universidades, comunidades impactadas e removidas de suas áreas de origem, como o que aconteceu em Moatize que fica ao norte de Moçambique, onde a Vale possui uma unidade de extração de carvão mineral de alta qualidade para exportação; sindicatos e as pessoas que encontrávamos pelas ruas das cidades que pesquisamos. A gente procurou ouvir muito.

Quais empresas foram apontadas pelos entrevistados como as principais ou que tinham a maior importância nos países?

Ana Garcia – Em Angola, todos os entrevistados apontaram a Odebrecht; Em Moçambique os atores indicaram a Vale. Também houve avanços quando as perguntas envolviam questões culturais e religiosas. Há uma forte incidência de igrejas Pentecostais; a presença da televisão brasileira é muito forte. As pessoas assistem a Rede Globo em tempo real e a influencia dessa cultura é muito forte, sobretudo em Angola. Desde o shopping center à mudança do comportamento do jovem que vê a novela e começa a usar a roupa ‘x’ e começa a falar com um sotaque diferente; o pastor que fala com o sotaque brasileiro para parecer mais próximo. Desde esse campo até você andar pela rua e ver a Odebrecht no ponto de ônibus, na obra da esquina, no supermercado.

Quais as similaridades que a pesquisa aponta na implantação dessas práticas no Brasil e na África?

Karina Kato – Há semelhanças e diferenças. Por mais que aqui no Brasil a gente tenha problemas na apuração e fiscalização desses investimentos, nos temos mecanismos institucionais que conseguem e podem dar visibilidade a esses conflitos, a destacar o papel dos Ministérios Públicos Estaduais e Federais, como grandes atores no controle dos direitos da população, seja na realização de audiências públicas onde a sociedade é consultada ou na apuração de denúncias de violações. Tanto em Angola quanto em Moçambique há um processo de democracia, que alguns atores que a gente entrevistou chamaram de fictícia. Ou seja, você tem as instituições democráticas, tem um Parlamento, você tem o voto e a audiência pública para, por exemplo, dar concessões para a terra, só que no fundo, nada é posto em prática. As licitações, que eles chamam de “concurso”, elas não existem. Então os processos são todos definidos no nível político, por redes de políticos e empresários. E não se tem informação nem pela imprensa, já que grande parte da imprensa é controlada, e nem por outros meios. Então, o modo de reivindicação ou visibilização do conflito ele é muito mais difícil. Existem organizações da sociedade civil que tentam levantar essa luta de forma autônoma, mas as que existem são completamente sufocadas pelo Governo e por essa visão de que esses investimentos estão trazendo melhorias. Os impactos vistos no Brasil são os mesmos na África. A legislação lá por ser diferente, muitas vezes os impactos se dão de formas diferentes. Tem impacto social, ambiental e econômico homéricos. Só que aqui a legislação é mais ou menos estruturada. Lá é diferente nesse sentido.

Então as relações seguem a lógica da tomada das decisões de cima para baixo?

Karina Kato – Não há horizontalidade nas relações. É interessante observar que a cooperação brasileira entra e cruza tudo. Financiamentos, todos os investimentos. Aí você vê a força da influência brasileira na formação das instituições que pensam os projetos dentro dos países. A Embrapa, por exemplo, está cooperando com uma empresa americana para fazer toda a investigação agrícola de Moçambique. Ela está reformulando toda a parte de pesquisa agrícola do país. Esse setor do país vai se moldar no modelo de desenvolvimento da Embrapa. Logo, a Embrapa está ligada ao projeto de expansão do corredor logístico do norte de Moçambique, onde abrigará o cultivo da soja. Por sua vez, se dá no mesmo corredor logístico da Vale. Aí você vai vendo como os caminhos vão se cruzando. Não há um processo de transferência de política, de modelo nesse ponto que se pense o investimento atendendo a necessidade local. Há uma repetição de um modelo brasileiro que traz erros em sua execução.