OUTONO BRASILEIRO

Que promessas? Que desafios?

 Marcos Arruda*

Em 20 de junho de 2013, vivemos aqui no Rio um dia histórico e uma estranha aventura na passeata dos muito mais de 300 mil. Ela se inscreve no contexto de mais de cem cidades brasileiras em que a população tem gritado “basta, não aguentamos mais!”. Para escrever estas linhas, faço um grande esforço de unir o coração à mente. Pois o sentimento é de que vamos explodir de emoções: alegria, exultação, esperança, gratidão, amorosidade, indignação, revolta, tristeza, vergonha…

DIÁLOGO VIBRANTE E SILENTE

outono brasileiroOs manifestantes desceram de vários lugares ao Centro do Rio. A grande maioria parecia ser da classe média, em especial a juventude que vai dirigir o país daqui a 20 anos. As manifestações se tornaram uma experiência de poder. Mostrando os cartazes uns aos outros, dialogávamos com os olhos, com o polegar aprovando as frases que líamos, com as câmeras e os celulares fotografando-nos uns aos outros com entusiasmo. E íamos cantando as consignas, abraçando amigos e nadando naquele mar de gente empolgada pela sensação de que unidos, ninguém nos vence. As manifestações foram capazes de dobrar a vontade dos governantes. Quando ainda relacionadas aos preços das tarifas de transporte público, conseguiram a redução em mais de 10 cidades. Um vitória parcial. A lista de outras reivindicações é mais ampla, a começar pelo passe livre, e permanece ignorada pelas autoridades.

outono brasileiro 1Mas há outra face desta realidade, que gera perplexidade. As marchas não têm liderança aparente, há um movimento de inovação que tende à superação das hierarquias. Isto em si é muito positivo, e acena para uma nova etapa nas relações de poder. Mas a falta de planejamento, coordenação e organização das marchas, coerentes com os seus objetivos, cria uma espécie de caos que não resulta numa síntese das principais metas que motivaram a manifestação, correndo o risco de tornar a passeata mais vulnerável à ação policial violenta, seguida da dispersão dos que protestam. Um trabalho junto à mídia e aos governantes seria necessário, lado a lado com os protestos, aproveitando-nos do momentum criado por estes. Existe no ar do Brasil um grito lancinante de NÃO AGUENTAMOS MAIS. Um grito tão forte que tem sido ouvido no exterior. Mas não suficientemente forte para romper os ouvidos moucos das elites brasileiras, seja no Estado, seja no campo empresarial. Será necessária uma Bastilha para que elas se disponham a ouvir e a ceder?

 

REPRESSÃO ENCOMENDADA E INDISCRIMINADA

Os governantes revelaram-se hipócritas, escondendo-se, calando, e colocando no seu lugar a Polícia Militar armada para a guerra. Os guardas pareciam personagens de Guerra nas Estrelas, vestidos de negro e armados até os dentes, empunhando os lança-bomba e fuzis de balas de borracha que podem cegar ou ferir gravemente os manifestantes.  São, na verdade, armas de efeito imoral. Na democracia, espera-se que os governantes venham dialogar com a população descontente. No Brasil isto raramente acontece, pois de fato prevalece a ditadura do grande capital, que também chamo de Corporatocracia. Justamente contra isto se insurge o grande número de manifestantes, que reconhece na política de transportes o dedo em riste, ou a mão estendida, da Fetranspor. Esta tem voz ativa nos governos de Eduardo Paes, no município, e de Sergio Cabral, no estado do Rio de Janeiro.

outono brasileiro 2

A repressão policial tem que responder às seguintes questões: a PM isolou e prendeu os depredadores de bens públicos e privados? Está investigando quem são eles e suas motivações? No Rio, a agressão policial foi indiscriminada.

Em São Paulo, a passeata gigante foi tranquila, enquanto os depredadores escolheram agir em frente à Prefeitura. Não havia necessidade de isolá-los, como no caso do Rio, onde eles estavam espalhados em grupos. Bastava a PM de São Paulo prendê-los em flagrante e o prejuízo teria sido limitado. Os helicópteros estavam no ar e podiam orientar a PM para o local com grande rapidez! Na marcha do Rio, havia centenas de homens com paus, que apareceram no meio da passeata e atacaram quem quer que estivesse carregando bandeiras da CUT ou de partidos políticos. A PM cercava a Prefeitura com todo o armamento repressivo, inclusive cavalos, “brucutus” e “caveirões”.

Na sua ofensiva contra os manifestantes, não pareceram visar os depredadores, pois caminharam em bloco atirando bombas e tiros de borracha contra todas e todos nas ruas,  ferindo vários deles. A repressão não cumpriu corretamente sua missão de proteger a população dos depredadores e saqueadores, nem de defender o prédio da Prefeitura e os bens públicos que estavam sendo danificados, como semáforos, tendas e prédios de empresas e bancos. Perseguiu os manifestantes até mesmo na Cinelândia, onde eles haviam se concentrado para cantar e gritar consignas, num ambiente festivo e alegre. Isto constitui uma flagrante violação dos direitos humanos e cidadãos da população manifestante. Terrorismo de Estado! E este comportamento da PM e do Batalhão de Choque foi em obediência a ordens superiores. É o governador o primeiro responsável.

outono brasileiro 3 “A ideologia da Lei de Segurança Nacional ainda persiste no arcabouço da estrutura das polícias e na formação do policial brasileiro. Destaco que ao povo não interessa se a polícia pertence à União, ao Estado ou ao Município. Polícia é polícia. Polícia é governo.

A polícia bate, maltrata, tortura. E será sobre o governo Dilma que cairão as responsabilidades das ações policiais contra os índios, contra os pobres, contra os estudantes, contra o povo.” (Eliete Ferrer)

Eu estava assistindo os filmes da página: http://cidadeolimpica.co/vandalismo-de-estado/ quando eles foram bloqueados! Esta foto mostra um jovem vitimado por uma bala de borracha, proveniente de uma “arma de efeito (i)moral”.

A direita está solta, procurando aproveitar-se do movimento dos estudantes para focalizar o governo Dilma e criar um ambiente de tensão e confrontação semelhante ao que antecedeu o golpe militar de 1964. As críticas que temos feito, juntamente com propostas de políticas estruturantes rumo a uma nova economia e um novo desenvolvimento são abundantes. Neste momento, frente às ameaças absolutistas da direita, cabe defender a legalidade e o governo constitucional contra qualquer tentação golpista. Esta é a estratégia inteligente, e que melhor leva em conta os interesses das classes trabalhadoras do nosso País.

 

DEPREDADORES

Os depredadores eram evidentemente estranhos às manifestações. O modo de eles agirem era claramente destruidor. A própria mídia reconheceu isto, mas escolheu focalizá-los com muito mais interesse e assiduidade do que os manifestantes pacíficos – e o que traziam em  seus cartazes. Por quê? Dependendo da capital, o número dos depredadores e saqueadores variou entre 30 a algumas centenas, ao passo que os manifestantes eram centenas de milhares! Se estes quisessem depredar, a destruição seria enorme! Tudo faz crer que eles eram infiltrados. Se eles eram marginais das gangues do tráfico ou mesmo ex-policiais, que interesse teriam em agredir e quebrar? Nenhum, a menos que estivessem a serviço de quem os tivesse contratado para desmoralizar a manifestação e justificar a brutal repressão. Elio Gaspari escreve em O Globo de 23/6/13, testemunhando que os conflitos de 22/6 em São Paulo foram deflagrados por um ataque da Rota contra grupos de manifestantes pacíficos.

outono brasileiro 6Talvez houvesse pequenos grupos de jovens desprezados e marginalizados pela sociedade e, em consequência, revoltados contra todos e contra a vida. O importante é que a repressão foi, por um lado, ineficiente em relação à ação deles, e por outro muito eficiente em dispersar a manifestação com brutal e indiscriminada violência. Fica, portanto, no ar a suspeita de que os depredadores tenham sido predominantemente infiltrações a serviço dos donos do poder.

 

TENDÊNCIAS E RISCOS

De tudo isto, brotam novas tendências e novos riscos. Se olharmos a História, vemos que há um grave risco de a juventude concluir que só com violência e guerra civil é possível alguma mudança necessária e urgente. A geração de 68 teve a mesma reação à completa falta de espaço de livre expressão, sobretudo a partir de Ato 5. A falta de liderança coerente e sábia, e a falta de um processo de síntese, que vá além da polarização dos opostos, podem levar à anarquia, à diluição e à derrota. Também podem levar a uma consolidação do que já é a ditadura do capital no Brasil, acrescentando a ela uma dimensão fascista de alto risco para a democracia.

Por outro lado, os tempos atuais não são propícios a golpes de Estado. E existe a vontade política da Presidenta de dialogar com representantes dos diversos setores organizados que participam e apoiam as manifestações e o leque amplo de reivindicações apresentados nelas. A questão de fundo não é meramente econômica. Tem a ver com a política de transportes, que é comandada por decisões políticas. A atual política de subsídios ao setor automobilístico tem sido desastrosa para a locomoção nas cidades e, certamente, para a qualidade da atmosfera. As manifestações estão exigindo uma nova política de transportes, que promova melhoras radicais e urgentes no transporte público em detrimento do automóvel particular.

outono brasileiro 7

Houve muitas vozes em defesa das causas indígenas e quilombolas, e dos direitos humanos e sociais da maioria trabalhadora. Contudo, ainda não aparece nas manifestações, com peso e visibilidade, o questionamento do modelo de desenvolvimento. São poucos os cartazes que se opõem à privatização dos serviços públicos, que exigem o fim dos leilões do petróleo e a estatização dos bens do subsolo brasileiro; também são escassos os que defendem a auditoria da dívida pública, que em dezembro de 2012 já havia alcançado o espantoso patamar dos R$ 3,6 trilhões, arrancando R$ 753 bilhões dos cofres públicos em favor de um punhado de banqueiros brasileiros e estrangeiros; nem se exigiu com vigor o fim dos incentivos ao agronegócio e às empresas de mineração, protagonistas do modelo agro-mineral-exportador que está na origem de uma gradual desindustrialização da economia e da crescente dependência de capitais estrangeiros na nossa economia.

Apesar da repressão onipresente, estas jornadas de outono tendem a prosseguir. No Rio, elas estão acontecendo em diferentes bairros, descentralizadas mas não menos ativas e vibrantes. Mas as barreiras são enormes: há o poder do Estado contra o povo, a gana dos governantes, aliados às elites, de não ceder nem um milímetro dos seus privilégios; existe o oligopólio da mídia, que mente a maior parte do tempo e cria falsas imagens para que se convertam em sentimentos equivocados das pessoas sobre a realidade. Daí pode advir uma onda de fascismo, capaz de varrer todo sinal de progresso histórico que estas jornadas parecem anunciar.

outono brasileiro 9

Apesar da onda de esperança gerada pelos manifestantes na rua e pelas vitórias parciais conquistadas, as dúvidas e os desafios são enormes. Habituados ao autoritarismo que tem reinado no Brasil há tantas décadas, com governantes tomando o voto que os elegeu como cheques em branco, que lhes permite fazer o que querem em nosso nome, a tendência do povo manifestante parece ser a anulação da autoridade, e não só do autoritarismo típico dos milênios de patriarcalismo que predominam no mundo e no Brasil. Mas também, há uma tendência ao espontaneísmo no lugar do planejamento e da organização.

Talvez tenha que ser este um momento em que o espírito anárquico prevaleça, até que a sociedade busque reequilibrar-se no fio da navalha que é a verdadeira democracia. Nela, o poder se constrói de baixo para cima, a partir do empoderamento econômico e político de cada cidadão e de cada comunidade. Seus eleitos vão formar instâncias representativas, mas estarão obrigados à transparência e a um monitoramento contínuo por parte dos seus eleitores. Se os representantes da sociedade optam por desviar-se e descumprir seus mandatos, poderão ser removidos pela vontade popular a qualquer momento. O planejamento democrático do desenvolvimento se inicia nos territórios onde vive a população, subindo dali para espaços mais amplos até a esfera nacional, que sintetiza e integra os planos das regiões e dos biomas num plano nacional de desenvolvimento não só econômico e técnico mas, sobretudo, humano e social.

outono brasileiro 8A pressão popular significa PODER. O poder da união na diversidade, o poder da inteligência e da vontade coletiva. Este poder é capaz não só de dobrar governantes e mega-corporações, mas também de mudar o mundo! Uma das maiores fontes do nosso poder como povo é o fato de sermos consumidores e contribuintes.

No dia em que nos unirmos para usar estes dois poderes, um de cada vez ou, mesmo simultaneamente, poderemos derrotar e superar o capitalismo com uma economia a serviço do humano e do seu trabalho, e não do capital e da sua ganância; uma economia centrada nas comunidades e no seu bem viver, e não na empresa e no lucro; uma economia planejada para atender as necessidades humanas e, assim, dispensar a necessidade de ‘programas sociais’ compensatórios… Uma economia que distribua a riqueza, o saber e o poder, em vez de concentrá-los. Uma economia que permite o empoderamento do povo trabalhador e sua prática de cidadania ativa, tornando o Estado servo dos seus interesses.

outono brasileiro 4Sim, há alternativas! E elas dependem de nós, de nos empenharmos em mudar nossa visão, nossa mente, nossa atitude, para que sejamos a mudança que queremos ver no Brasil, no mundo!

Neste momento ser a mudança é estar presente nas ruas, na mídia, nos gabinetes do Executivo, nos espaços do Legislativo e do Judiciário, denunciando a guerra entre classes desencadeada pelos donos do capital contra o povo que vive do seu trabalho, e também afirmando O BRASIL QUE QUEREMOS!

 

 

* Socioeconomista e educador do PACS, Rio de Janeiro. Associado ao Instituto Transnacional, Amsterdam.