massa crítica logoOS SENTIDOS DA LUTA PELA AGROECOLOGIA E PELA AGRICULTURA URBANA:

REFLEXÕES EM CONSTRUÇÃO.

por Emilia Jomalinis [1]

Terra é mais que terra (…) É o lugar histórico dessas lutas (…) dos índios, dos negros e dos camponeses. (…) Terra é festa do povo –

Dom Tomás Balduino

O III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) acontece em um importante momento da história brasileira, numa conjuntura marcada por grandes contradições. No âmbito da construção da agroecologia, é notória a conquista da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais na construção de políticas públicas de apoio à agroecologia. Entretanto, vivenciamos neste mesmo cenário o avanço do agronegócio e da mineração, no campo e na cidade, a estagnação da reforma agrária, a violação de direitos territoriais e avanços de demais empreendimentos liderados pelos atores hegemônicos do grande capital.

O estado e a cidade do Rio de Janeiro, especialmente, protagonizam estas transformações de maneira bastante singular, sendo uma das sedes da Copa do Mundo, que ocorrerá em junho próximo, e das Olimpíadas de 2016, ainda em construção.  Aqui, o modelo de desenvolvimento tem como pilar os megaprojetos e megaempreendimentos, cujo objetivo principal é gerar lucro às empresas dos setores imobiliários, construtoras, proprietários fundiários, etc. O avanço desses projetos acirra e evidencia conflitos e a disputa de projetos ao buscar consolidar para o Rio e seu entorno um projeto de cidade-empresa e cidade-mercadoria, que tende a ignorar os direitos humanos de suas populações. Neste modelo de cidade há um:

“(…) aprofundamento da desigualdade e o desenvolvimento da cidade sob a lógica da empresa. O modelo se funda na ideia de que cidades devem ser planejadas segundo uma perspectiva estratégica. O planejamento estratégico é transposto do planejamento empresarial para o planejamento de cidades: as cidades passam a ser pensadas como empresas que concorrem com outras empresas em um mercado internacional de cidades”. (VAINER, 2014)

Mas afinal, o que esta conjuntura carioca tem a ver com agricultura?

Caravana Rafael Daguerre

Visita realizada durante a Caravana Agroecológica e Cultural da Região Metropolitana do Rio de Janeiro à comunidade de Vila Autódromo, ameaçada de remoção (FOTO: Rafael Daguerre)

Um olhar sobre o território

O olhar para o território, convite feito para o III ENA tem uma intencionalidade. Afinal,

“O território é assim efeito material da luta de classes travada pela sociedade na produção de sua existência. (…) é, pois, simultaneamente, construção, destruição, manutenção, transformação. É, em síntese, a unidade dialética, portanto contraditória, da espacialidade que a sociedade tem e desenvolve. Logo, a construção do território é, contraditoriamente, o desenvolvimento desigual, simultâneo e combinado, o que quer dizer: valorização, produção e reprodução” (OLIVEIRA, 2000).

Diferentemente da forma como outros atores entendem o conceito de território, esta palavra aparece aqui com o intuito de visibilizar as disputas existentes e os distintos atores que a compõe: desloca-se o foco das experiências individuais e de suas tecnologias e se acende os holofotes sobre o contexto no qual as experiências localizam-se. Apontar os processos de acumulação de capital a partir de atores que não estão vinculados a processos de construção da vida, mas sim de extração de riqueza num curto prazo assim como a construção da agroecologia que, muitas vezes invisibilizada nesses territórios por esses próprios processos de acumulação do capital, propõe um contraponto do modelo de desenvolvimento predominante. Trata-se de pensar o território enquanto um espaço de disputa e construção da agroecologia, simultaneamente. São nos vários territórios brasileiros que as disputas estão cada vez mais acirradas. Trata-se da disputa de projeto de sociedade, ou o que muitos chamam de projetos de modelo de desenvolvimento. O enfoque no território busca analisar a construção da agroecologia não de maneira fragmentada, mas sim, contextualizada em seu entorno.

Conflitos e Resistências no território metropolitano do Rio de Janeiro

 A cidade do Rio de Janeiro é, talvez mais do que nunca, um território em disputa. Encontra-se cercada por megaempreendimentos industriais, da Baia de Guanabara à Baia de Sepetiba: aqui, a vida acontece balizada pelo maior complexo petroquímico da América Latina, o Comperj (Complexo Petroquimico do Rio de Janeiro), e o complexo siderúrgico liderado pela TKCSA, maior siderúrgica da América Latina. No meio disso, encontramos uma cidade que respira e transpira contaminação; sua população vê seus direitos à moradia consequentemente violados e sua autonomia cada vez mais limitada por um processo de militarização, sobretudo nas favelas e bairros periféricos.

Correspondendo 70% do território da cidade, a Zona Oeste da cidade é um dos territórios mais impactados pelo avanço de processos da reprodução do capital; trata-se de um território de sacrifício para a garantia desta reprodução. Em especial suas Áreas de Planejamento que compreende Bangu e Realengo, Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba apresentam os piores índices socioeconômicos e ambientais da cidade e uma população majoritariamente negra. Na medida em que os impactos ambientais são vivenciados de maneira mais intensa por esta população, podemos então afirmar que temos, no Rio, um processo de racismo ambiental.

invasão rico pobre

São nestes territórios que estão presentes importantes intervenções do grande capital, das políticas públicas – nem sempre proveitosas a sua população – das três esferas governamentais, além de iniciativas populares auto-organizadas, aquelas fomentadas por entidades de apoio e fomento e, não obstante, também aquelas do setor de Responsabilidade Social Empresarial. O contexto de disputa ali colocado se agrava com o aproximar das Olimpíadas que terá como um dos principais cenários esta região da cidade. Às vésperas da Copa, permanecem as ameaças de remoção devido a grandes obras nos territórios próximos aos bairros de Jacarepaguá (como em Vila Autódromo, apesar das décadas de resistência); aquelas oriundas dos processos de especulação imobiliária ( como na comunidade do Camorim, que já há uma década luta pelo reconhecimento de seu território como descendente de Quilombo); das Vargens ( devido as políticas de conservação ambiental que não reconhecem as formas de vida – centenárias – atuantes no interior e imediações das unidades de conservação, propondo uma política cega a vida da população tradicional da região). Também são já conhecidos os impactos do Polo Industrial na Baía de Sepetiba sobre moradores/as, agricultores/as e pescadores/as na região. Estes são apenas alguns exemplos das ameaças às formas de vida que de alguma forma antagonizam com a lógica do capital, que expande seu território de atuação na região. Tendo em vista que a Zona Oeste é região prioritária para a realização das Olimpíadas, em 2016, esta realidade só tende a se agravar.

 sangue favela

A Agricultura também acontece na cidade

 Entre as malhas do tecido urbano persistem ilhotas e ilhas de ruralidade “pura”, torrões natais frequentemente pobres (nem sempre), povoados por camponeses envelhecidos, mal “adaptados”, despojados daquilo que constitui a nobreza da vida camponesa nos tempos de maior miséria e da opressão. A relação “urbanidaderuralidade”, portanto, não desaparece; pelo contrário, intensifica-se, e isto mesmo nos países mais industrializados. Interfere com outras representações e com outras relações: cidade e campo, natureza e facticidade etc. Aqui ou ali, as tensões tornam-se conflitos, ou conflitos latentes se exasperam; aparece então em plena luz do dia aquilo que se escondia sob o “tecido urbano”. (Henri Levebvre, 1968)

Este contexto do tempo presente, porém, tem pouco a ver com o passado da região em destaque. A Zona Oeste do Rio de Janeiro, em especial os bairros de Santa Cruz, Guaratiba e Campo Grande trazem consigo uma história ligada à agricultura. Foram historicamente áreas afastadas do perímetro urbano, e com uma população mais dispersa e em número bastante inferior às paróquias urbanas. Possuíam uma economia concentrada na coleta, artesanato, pecuária e horticultura (Moura, 1988: 27). A distância dos centros urbanos fez com que a região desenvolvesse uma economia de subsistência. Era um território distante e longe do litoral; ao mesmo tempo, era uma área de fronteira onde a proximidade permitia uma ligação constante entre território rural e urbano. Depois de sertão, a região passou a ser denominada zona rural, e a produção que era focada no auto-consumo passou a ser mais comercializada. Tratava-se de uma área produtiva tanto pela criação regular de gado como pela produção agrícola. Em Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz era possível encontrar inúmeros estabelecimentos agrícolas com uma produção bastante diversificada e economicamente produtiva. Era, assim, um território não urbano da cidade do Rio de Janeiro voltado desde o início para a produção extrativa e agropecuária. Só após muito tempo que de zona rural passou para oeste da cidade.

Mesmo com diversos processos de transformação e a urbanização, é possível encontrar a tradição da agricultura na vida das pessoas – da agricultura de roça à agricultura dos quintais. Forte expressão da agricultura se encontra hoje nas proximidades e nas áreas do Parque Estadual da Pedra Branca, maior floresta urbana do mundo! Porém, por ser alvo destes distintos processos e ameaças, a permanência desta prática não é um dado. É preciso lutar para garanti-la. Usada na época com caráter denotativo, a palavra sertão aparece hoje como forma de reafirmação de uma história que ainda está presente, mas que tenta ser constantemente apagada.

 A realidade carioca não está distante de outras cidades do Brasil. Os dados sobre a população rural do Brasil nos permite perceber que muitos dos municípios que possuem população rural elevada são cidades médias ou estão em regiões metropolitanas. No estado do Rio, 44.145 estabelecimentos familiares ocupam uma área de 470.221 ha, enquanto míseros 14.335 estabelecimentos não familiares ocupam 1.575.646 ha. Apesar de mostrar uma relação menos concentrada que a média nacional (são 75.5% dos empreendimentos correspondem a 33% da área total de estabelecimentos agrícolas), a agricultura familiar e camponesa no Rio se depara, para além do agronegócio, com grandes empreendimentos, políticas de unidade de conservação altamente restritivas e, na região metropolitana, com um crescimento urbano ancorado na especulação imobiliária e expansão de indústrias. Os dados abaixo foram coletados no Censo da Agricultura Familiar de 2006 e tende a apresentar dados abaixo da realidade.

tabela agro urbana

Assim, a permanência da agricultura na cidade reforça a ideia de Oliveira, segundo o qual

“a análise da agricultura, especificamente a brasileira, neste final de século e milênio deve ser feita no bojo da compreensão do desenvolvimento capitalista em nível mundial (…). esses processos contraditórios produzem e se reproduzem em diferentes partes do mundo atual (…). parto, portanto, da concepção de que o território deve ser apreendido como síntese contraditória, como totalidade concreta do modo de produção/distribuição/circulação/consumo e suas articulações e mediações supra-estruturais (…)“ (OLIVEIRA, 2001).

Síntese

Em meio a este contexto de conflitos e resistências, reafirmar um projeto para o campo e para a cidade de bases agroecológicas nos parece fundamental. É no acirramento das contradições que novas possibilidades se criam. As concepções dicotômicas e fragmentadoras da modernidade vêm sendo pouco a pouco postas em xeque. Refutamos aqui os binômios antigo/novo, arcaico/moderno. A segmentação campo cidade, que ganhou contornos, sobretudo a partir da revolução industrial, nunca foi facilmente delimitada e vem sendo cada vez mais difícil classificar onde acaba o urbano e começa o rural, e vice versa. O processo de desenvolvimento da agricultura capitalista é marcada, pois, pelo processo de territorialização do capital, sobretudo dos monopólios, de tal forma que o capitalismo vem unificando o que ele separou no inicio do seu desenvolvimento: indústria e agricultura. Isso tem trazido confusões no campo da academia. Há quem fale de um processo de rururbanização como consequência dessa integração agricultura-indústria. A permanência de uma agricultura familiar e camponesa, evidencia que o campo está também, contraditoriamente, marcado pela expansão da agricultura camponesa, onde o capital monopolista desenvolveu liames para subordinar/apropriar-se da renda da terra camponesa, transformando-a em capital. Não estão totalmente dissociados da reprodução do capital, mas se inserem nessa estrutura de maneira bastante peculiar. Afinal, o local do campesinato e da campo reprodução do capital e da luta contra ele sempre foi um complexo debate.

Em outubro de 2013, um polêmico artigo de jornal causou indignação no movimento agroecológico. Dizia que a agroecologia era coisa de “fadas e duendes” e errava feio ao considerar a agroecologia uma ficção, tanto do ponto de vista da técnica como de um movimento social. Erra também ao considerar que o único conhecimento possível é o cientifico. Mas é feliz quando aponta a agroecologia como uma luta anticapitalista. A agroecologia, como proposta de modelo, busca na sua diversidade se contrapor à lógica agro-mineral na qual se baseia a economia brasileira atual, onde o que domina são os atores do agronegócio e da mineração, ambos para exportação especialmente. A luta pela agroecologia é, assim, uma luta sobre modelo de desenvolvimento, na qual nem o capitalismo agrário nem outras formas de reprodução ampliada do capital são as propostas para a conquista de um modelo justo.

Diante da conjuntura atual, é fundamental lutarmos pelo processo de garantia e reconhecimento dos territórios tradicionais e da agricultura familiar e camponesa na cidade do Rio de Janeiro. Este ponto é fundamental para a sobrevivência integral destes grupos, mas também porque projetam, atualmente, propostas concretas para um desenvolvimento alternativo na região, assim como representam – politicamente – que alternativas existem e são possíveis de serem realizadas sistemicamente. Portanto, em nossa visão, lutar pela Agricultura na Cidade implica o auto-reconhecimento destes grupos como parte de um movimento social mais amplo de luta por uma Cidade de Direitos, e não como Cidade-Mercadoria, desde práticas concretas de resistência e experimentação da auto-organização. Nossa luta é pela compreensão e constituição de um território de resistência e experimentação da auto-organização na disputa pela Cidade.

Lefebvre já destacava que “nem todos habitantes absorvem o modo urbano de viver e assegura que no tecido urbano permanecem ocupações rurais em meio a áreas urbanas” (LEFEBVRE, 2004). Denomina esses espaços de ilhotas e ilhas de ruralidade pura. Para nós, são ilhas que permitem a reconexão daquilo que o capitalismo buscou separar, assim como um suspiro numa cidade cada dia mais caótica. É a materialização de uma resistência: política, cultural, social e econômica. Viva a luta das agricultoras e dos agricultores do Rio de Janeiro.

Fontes e sugestões de leitura:

http://www.pacs.org.br/2013/08/29/thyssenkrupp-companhia-siderurgica-do-atlantico-tkcsa/

 http://www.viomundo.com.br/denuncias/carlos-vainer-com-pretexto-dos-megaeventos-rio-promove-limpeza-urbana-e-sera-cidade-mais-desigual-em-2016.html

http://www.lpp-buenosaires.net/ppfh/documentos/teses/maristelaturlmedeiros.pdf

  http://enagroecologia.org.br/2014/05/17/instalacao-pedagogica-da-regiao-metropolitana-do-rj-explicita-conflitos-do-modelo-de-desenvolvimento/

 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.

MARQUES, Marta Inez M. e OLIVEIRA, Ariovaldo U. (orgs.), O campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo, 2004.


[1] Do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul e mestranda pelo PPGG/UFRJ. Militante feminista e agroecológica.

Leia e baixe esse artigo em pdf: Os Sentidos da Luta pela agroecologia e pela agricultura urbana, por Emília Jomalinis.